Carta de Libertação I
Sobre o amor...
Se eu dissesse que meu coração disparava, que as minhas mãos gelavam quando te via, eu estaria mentindo. Se eu dissesse que sua visão me recorria todos os dias da semana, poderias certamente me chamar de mentirosa. Um fato muito estranho, mas a única verdade é que eu te admirava, admirava muito. Tanto que tiveram que se passar muitos anos para eu me libertar de tudo isso, se é que vou conseguir. E hoje quando penso, quando tento me lembrar através das poucas lembranças que me fogem, percebo que conseguistes realizar uma façanha; uma façanha que acho que vai demorar para ocorrer de novo.
É como se tu, furtivamente, tivesses se apoderado das chaves que estavam no meu bolso e entrado no meu coração. E tudo isso sem ao menos eu perceber. Agora quando lembro, me recorre que aquelas palavras duras que eu te dirigia eram sintomas de um amor que eu não compreendia.
Seria esse o mistério, Derquagot? Seria essa a diferença do amor e da paixão? A paixão é sintomática e o amor não? Vejo que o amor é silencioso: vem e se instala.
Preciso dizer que senti algo muito estranho quando tu fostes embora. Uma mistura de tristeza e raiva. E não sei quais mistérios estão por detrás disso.
O pior foi o arrependimento que se instalou ali; como mil aguilhões de fogo dentro de mim. Arrependimento por não ter aproveitado os minutos de tua presença, tua voz, tuas palavras. Arrependimento por ter perdido a oportunidade de fazer um laço de amizade, porque só a tua amizade já me bastaria. E morte, pois reconheço que não mais o verei, caro Derquagot: acho que nos perdemos no espaço e no tempo; pereceremos separados e assim será. Achas isso triste, Derquagot? Vejo tudo isso como um pêndulo rotatório a virar os anos e a nos cegar com o negrume de um caminho perdido.
O tempo passa rápido, não? E tudo entre aquela época e hoje, às vezes, parece que foi um vazio. E agora também tenho dúvidas se realmente foi eu quem vivi aquilo tudo. O tempo voa e o que acaba ficando são dois pontos e uma linha tracejada no meio.
Talvez um dia eu volte a ler isso e veja o quão foi ridículo. Mas creio, Derquagot, que essa hipótese é improvável. Tenho maturidade o suficiente para saber o que sinto. E se esse sentimento persistiu até hoje, é porque algo de real havia nele. Confesso que tal sensação arrefeceu com o tempo, mas agora voltou à tona. Como um sentimento que adormece e permanece no canto do nosso coração, mas que logo reaparece e faz-nos ficar irrequietos. E logo depois some deixando um vazio. Será que há um meio de se acostumar com isso, Derquagot?
Admito que gostaria de deixar meu coração fechado. Mas também tenho dúvidas. O que pensas, Derquagot? Por que não dizes algo?